sábado, 8 de março de 2014


Na greve dos Garis teve de tudo. Só faltou a trilha sonora de "Escrava Isaura" nas chamadas do RJ TV....






 Por Leonardo Soares
Quase fim de noite do primeiro sábado após o carnaval. Os garis do Rio de Janeiro acabam de obter uma linda e emocionante vitória contra um governo autoritário, arrogante e elitista. Nem médicos e professores, profissionais de "formação superior", com tradição organizativa muito maior, conseguiram algo tão significativo.
 
E isso depois do prefeitinho passar toda a semana debochando do movimento, desqualificando-o, pondo até a polícia para "escoltar" os trabalhadores. Um absurdo. A volta completa do modelo capitão-do-mato-made-in-Rio.
 
E tudo isso com o beneplácito daquela emissora de Televisão. A Rede. Ele - o eterno sub-prefeitinho dos riquinhos - e os órgãos de (contra-)e(des)informação só faltaram chamar o exército, munidos de chibata, pôr os neguinhos e neguinhas de laranja no tronco e ensinar que fazer política e reivindicar direitos não é para qualquer tipo de gente; não é assunto para certas raças.  Alegou-se até que seria não um movimento grevista, mas uma "chantagem". E numa carta de um leitor do jornaleco golpista (falsamente arrependido) e que "ama a democracia" lê-se: "fazer chantagem é crime capitulado em nosso Código Penal".
 
A emissora democrata e que tem uma paixão por "informar bem e de maneira cada vez melhor" - em que pese o seu vício por só ouvir e deixar falar uma das partes em conflito - tentou porque tentou montar todo um contexto de criminalização do movimento grevista. E - é claro - não faltou alusões a supostas infiltrações de "elementos" (reparem no jargão bem típico dos militares dos anos de chumbo) ligados a candidato ou putlitiku A ou B.
 
Tentou-se ao máximo descaracterizar a iniciativa dos garis.  Muitos fizeram questão de frisar: "chantagem dos lixeiros!".
 
Não esconderam o seu desconforto, o seu asco vendo tanta gente "da cor" ocupando as avenidas mais centrais da cidade do Rio, denunciando as péssimas condições de trabalho (até arroz azedo já lhes foi servido), reivindicando melhorias salariais etc.
 
Mas não: o que importante para muitos que não conseguiram passar do pré- 13 de maio de 1888 e que lamentam até hoje a Lei Áurea, o que importa é o tamanho de lixo em minha porta, a cidade emporcalhada, a chantagem, o uso político...
 
Ah, sim, porque até hoje, em pleno 3º milênio, ainda temos que ouvir gente que no afã de combater algum movimento grevista, simplesmente berra: "Ele é politizado!", "Ele é movimento político e não um movimento trabalhista!!!".    Detalhe: uma socióloga com trocentos pós-doutorados consegue ter a coragem de escrever uma aberração dessas. E para mostrar que na academia, re
 
O que tanto reacionarismo não faz questão de esconder é que no caso específico dos garis o discurso do contra tem como pano de fundo dois conceitos primordiais: a de que o pobre da favela ou do subúrbio é incapaz de se mobilizar, não tem tutano e nem qualidade em termos de cidadania para pensar e praticar a política com P maiúsculo; e, de que por ser negro, ele nada pode fazer de bom a não ser jogar futebol ou dançar sorrindo para a câmera global.
 
Ao final de tudo é a reinvenção do paradigma racial de um Euclides da Cunha (com o pobre representado pelo sertanejo sendo em essencia um ser primitivo, débil mental, ignaro), de um Oliveira Lima (os negros e suas superstições, incapaz de se civilizar) ou de um Paulo Prado (o negro, o índio e o mestiço só pensam em sexo).

E mesmo com toda a briosa, valorosa e muito bem sucedida luta dos garis, é muito triste, é desesperador eu diria, ver como as teorias raciais de fins do século XIX continuam tão vivas, tão incandescente nas mentes e textos de tanta gente nesse país.

Paradigmas ainda muito presente no senso comum - daí a sua incrível perenidade e força. Esse sim um lixo horroroso, infecto. Exalado por muita emissora de televisão e por uma revista ( e seus blogueiros) e que agem criminosamente contra a consolidação de uma coisa chamada cidadania.

É muito difícil construir um Estado de direitos pleno com tanta truculência, material e cultural (da época escravista) por parte da mídia, do poder e da gente da "boa sociedade".


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